quinta-feira, 25 de junho de 2015

AMAR É BATER PALMAS


«A senhora Clap é excelente a bater palmas. Bate palmas mesmo muito bem.» Começa assim a história da Senhora Clap, um livro que não é bem uma história - no sentido estritamente narrativo do termo - mas que guarda uma integridade e coesão estranhamente invulgares. Podemos chamar-lhe um «livro de personagem», na medida em que a força da sua argumentação se concentra à volta de uma só figura, à semelhança do conto «Retrato de Mónica», de Sophia de Mello Breyner Andresen, ou O Senhor Valéry, de Gonçalo M. Tavares, entre tantos outros.

Mas as comparações acabam aqui, porque a Senhora Clap, que conhece «quase todos os segredos sobre cada salva de palmas e sabe ler os sentimentos e as emoções de cada pessoa que as dá», é demasiado original para ser comparada com outra personagem qualquer. Muito ocupada a escrever o Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes, aplica grande parte do seu tempo em conferências sobre o assunto, explicando ao público algumas noções retiradas do seu diário de campo. Por exemplo:

38 - «Só devemos bater palmas quando nos apetece.»
41 - «Não devemos ter receio de bater palmas mesmo quando somos os únicos a fazê-lo.»
74 - «As pessoas que batem palmas a olhar para o lado, não sentem muito.»
75 - «As palmas que não se sentem perdem o som.»
94 - «Não é preciso ganhar para que as pessoas mereçam palmas.»
108 - «As pessoas apaixonadas batem palmas com mais intensidade.»
387 - «Amar é bater palmas.»

Na caracterização da Senhora Clap, que aqui não se pretende exaustiva, há que referir ainda um pormenor da ordem da fenomenologia: é que a Senhora Clap fica transparente do lado esquerdo quando bate palmas, e isso contribui para o seu interesse científico e antropológico, acham os especialistas. A única condição é que as palmas têm de ser sinceras (confirmar acima, nota 38), sob pena de nela se produzir o efeito adverso. Quem acha que bater palmas é um acto banal e desprovido de interesse, «são só as mãos a fazerem uma espécie de barulho», deve pelo menos ter a delicadeza de guardar esse julgamento para si. Caso contrário, pode acontecer isto:

«Uma vez, enquanto aplaudia, a Senhora Clap ouviu um comentário deste género e - zás - perdeu a transparência num ápice! Começou a ficar opaca, muito opaca, tão opaca que não se conseguia ver nada, nem a cor dos seus olhos, principalmente do esquerdo. E nessa altura disse:
- Peço desculpa, mas hoje não consigo bater mais palmas!»

Seria uma pena que isso acontecesse muitas vezes, pois a matéria do Tratado Universal sobre a Arte de Bater Palmas em Situações Alegres ou Tristes é vastíssima, mesmo inesgotável. Se «amar é bater palmas» (confirmar acima, nota 387), é impossível ficarmos quietos e calados por muito tempo, está bem de ver. Comecemos por aplaudir a Senhora Clap e de certeza que sentiremos o eco da atenção dela em nós. Experimentem.

A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos
Marta Duque Vaz (texto)
Alexandre Esgaio (ilustração)
Planeta Manuscrito, 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

A ILHA DO TESOURO



Enquanto esperamos (ansiosamente) que chegue às bancas a LER de Verão, aqui fica um texto publicado na edição anterior, na secção de «clássicos recuperados», Biblioteca do Nautilus. A Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson (1850-1894), é um daqueles romances sem tempo e sem idade, tal como Peter Pan ou As Viagens de Gulliver, mas que se compreendem com outra amplitude depois de instalada (esperemos que não demasiado instalada) essa época designada por «maturidade. A colecção chama-se Vício dos Livros e é editada pela Civilização. Adoro a(s) capa(s). E nunca me canso de voltar a estes mares turbulentos:

A Ilha do Tesouro
«Estamos mais que nunca no espírito do jogo infantil, entre assédios, surtidas e assaltos de bandos rivais.» Em Porquê Ler os Clássicos? (Teorema), Italo Calvino não se referia à história de Jim Hawkins e do execrável bando de piratas que acompanha o seu crescimento, mas o que afirmou a propósito de outro livro pode ser aplicado, sem reservas, ao clássico A Ilha do Tesouro. É um dos títulos recuperados do catálogo da editora Civilização, com traduções revistas e design gráfico de Pedro Aires Pinto. De Anne dos Cabelos Ruivos (Lucy Maud Montgomery) a O Príncipe e o Pobre (Mark Twain), passando por O Apelo da Selva (Jack London) e As Minas de Salomão (H. Rider Haggard), os doze primeiros títulos estão já definidos.

Se há razões que explicam a qualidade perene e universal de um romance de aventuras publicado em 1883, talvez uma delas se prenda à pulsão lúdica própria do ser humano, ao seu desejo de ensaiar e repetir o jogo, instituído como um fim em si mesmo e, por isso, livre de regras e de retórica. No fundo, a pirataria. Sobre um género em voga no seu tempo, Robert Louis Stevenson aplicou o estilo de narrar enérgico e expressivo, sempre comprometido com a ação, sem maneirismos e moralismos de época. Ao mesmo tempo, divertia-se (é lícito pensá-lo) a construir personagens dotadas de tal graça e manha que não desdenharíamos conhecê-las. É reconfortante saber que boa parte delas foram inspiradas em amigos e conhecidos do próprio autor. 

Obedecendo à sua moral peculiar, Stevenson, um cavalheiro escocês que sempre gostou das más companhias, fará os possíveis para nos confundir, juntando no mesmo barco aparentes virtuosos como doutor Livesey e requintados sacanas como Long John Silver. Chegaremos a decifrá-los? Ganharemos a compreensão profunda destes personagens, das suas motivações e comportamentos? Todo o romance é um jogo de escondidas, e o pacto estabelecido com o leitor de A Ilha do Tesouro – seja adolescente curioso ou adulto nostálgico – não ficará completo sem que este se atreva a perder, porque saber perder também é uma das finalidades do jogo. Nada de grave: os derrotados dão boas histórias. 

A Ilha do Tesouro
R.L. Stevenson
Civilização Editora

domingo, 21 de junho de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 12


«Uma coisa, logo que conhecida, jamais poderá ser desconhecida. Apenas poderá ser esquecida. E, na medida em que domina o tempo, enquanto puder ser lembrada, indicará o futuro. É mais prudente, sejam quais forem as circunstâncias, esquecer, cultivar a arte de esquecer. Lembrar é defrontar o inimigo. A verdade jaz na lembrança.»

Anita Brookner, Olhem Para Mim, Teorema, 1988, tradução de Paula Reis. Originalmente publicado em 1983.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

RATING MÁXIMO


Não é um «triplo A», mas um «quádruplo A», esta segunda leva da colecção Grandes Vidas Portuguesas, uma edição conjunta da Pato Lógico/Imprensa-Nacional Casa da Moeda. Dá-se a coincidência de todos os biografados partilharem a letra A no nome com que ficaram para a História. Por ordem, na imagem: Azeredo Perdigão, primeiro presidente da Fundação Calouste Gulbenkian; Alfredo Keil, artista e compositor do hino nacional; Aristides de Sousa Mendes, o diplomata que salvou milhares de vidas do regime nazi; e Ana de Castro Osório, escritora, editora, feminista, republicana e unanimemente considerada «a mãe da literatura infantil». A colecção foi apresentada por Henrique Cayatte no passado domingo, durante a Feira do Livro de Lisboa, com a presença dos quatro escritores: António Torrado, José Jorge Letria, José Fanha e moi-même. Faltaram os ilustradores, que fizeram um trabalho primososo. Também por ordem: Susa Monteiro, Susana Carvalhinhos, Alex Gozblau e Marta Monteiro. Venham mais quatro.

domingo, 14 de junho de 2015

O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO, 11


«Juntamos duas coisas que ainda não se tinham juntado. E o mundo transforma-se. Nesse momento as pessoas podem não dar por nada, mas não importa. De qualquer maneira, o mundo transformou-se.»

Julian Barnes, Os Níveis da Vida, Quetzal, 2013, tradução de Helena Cardoso. Originalmente publicado em 2013.

sábado, 13 de junho de 2015

VIDAS PORTUGUESAS


Azeredo Perdigão, Alfredo Keil, Aristides de Sousa Mendes e Ana de Castro Osório. Mais quatro biografias para a colecção Grandes Vidas Portuguesas (Pato Lógico/INCM) e a minha segunda parceria deste ano com a ilustradora Marta Monteiro, depois do Amores de Família (Caminho). Amanhã, 14 de Junho, os autores reunem-se na Feira do Livro (Auditório da APEL, 16h00) para um debate moderado por Henrique Cayatte. Será que as biografias ainda são importantes na formação de novos leitores? É disso que vamos falar. E é o último dia da feira. Apareçam!

sexta-feira, 5 de junho de 2015

OUTROS AMORES DE FAMÍLIA


Em Junho de 2005, chegava ao fim uma das melhores séries de televisão de sempre: Sete Palmos de Terra. Obra-prima do argumentista, produtor e realizador norte-americano Alan Ball, ao longo de cinco temporadas tratou de tudo o que há entre a vida e a morte, criando um espaço simbólico onde os mortos falavam com os vivos, sem sustos, sem surpresas, como se fosse natural conversarmos todos sobre as nossas culpas, os nossos medos e ressentimentos (e que algum alívio, às vezes, pudesse resultar dessas conversas). A história da família Fisher é também a nossa História: o antes e o depois da Guerra do Iraque, o 11 de Setembro e a antevisão dos tempos sombrios que nos esperavam, com piscadelas de olho ao colapso financeiro iminente (George é uma espécie de Cassandra) e à queda da classe média. Julgo que nas séries feitas agora, a maior parte delas versando psicopatas, não seria possível um final épico como este: Claire a conduzir o automóvel por uma longa estrada onde há luz e poeira, Claire a conduzir-nos pelos caminhos da incerteza com um sorriso de esperança, apesar de tudo. 

Dez anos volvidos sobre Sete Palmos de Terra, o Público fez um excelente trabalho jornalístico multimédia em que, entre outras abordagens, entrevistou 13 grandes fãs da série. Aceitei. Foi um privilégio. Está aqui.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

DE VOLTA À FEIRA DO LIVRO


Ainda a propósito do post de ontem, deixo a programação da Pato Lógico e Orfeu Negro (ambas no stand A42) para esta Feira do Livro de Lisboa. No último dia, a colecção Grandes Vidas Portuguesas será o pretexto de um debate com os autores António Torrado, José Jorge Letria, José Fanha e moi-même. «A importância da biografia literária na formação de novos leitores» será moderado pelo designer e ilustrador Henrique Cayatte. Dia 14 de Junho, domingo, às 16h30, no auditório da APEL. Cliquem na imagem para ler melhor.

terça-feira, 2 de junho de 2015

E VÃO OITO


No mesmo dia em que estive com a Marta Monteiro na Feira do Livro de Lisboa, para o lançamento do Amores de Família, chegava ao Stand A 42 a nossa primeira produção conjunta: a biografia de Ana de Castro Osório para a colecção Grandes Vidas Portuguesas, nascida da parceria entre a Imprensa Nacional-Casa da Moeda e a editora Pato Lógico. Não é a primeira biografia que escrevo (há outra na gaveta), mas gostei muito de pesquisar sobre a vida e a obra de uma mulher tão versátil, que deixou a sua marca na literatura infantil portuguesa e não só: foi editora de Camilo Pessanha (Clepsidra) e uma figura proeminente na luta pelos direitos das mulheres e pelo sufrágio universal. Escrevi um breve post no Verão passado, quando estava mergulhada no assunto. Por razões de calendário, o livro acabou por só sair agora, a fazer pendant (galicismo dispensável) com o Amores de Família e indo juntar-se aos outros sete que estão no lado direito do Jardim Assombrado.