A 15 de Julho de 1944, faz hoje 71 anos, uma rapariga judia escrevia num diário secreto a uma amiga imaginária: «...se estás a pensar que a vida aqui no Anexo é mais difícil para os adultos do que para os jovens, a resposta é não, sem dúvida que não. As pessoas mais velhas têm uma opinião sobre tudo e estão seguras de si próprias e das suas ações.»
Se há nomes próprios que reflectem algo do carácter do seu portador, a frontalidade e a argúcia de Anne Frank transparecem no que lhe foi atribuído à nascença (em inglês, «frank» é sinónimo de «sincero», «honesto», «directo»). Do horror generalizado até aos familiares e residentes no «anexo», expressão por que ficou conhecida a parte da casa de Amesterdão onde oito pessoas viveram escondidas durante dois anos, Anne não foi branda nas palavras. Quando veio a público a primeira edição do diário, em 1947, a opção de Otto Frank, pai de Anne e único sobrevivente, foi eliminar os trechos mais íntimos ou então pouco abonatórios para a família, em especial para a mãe. «Tenho uma característica predominante que deve ser óbvia para qualquer pessoa que me conheça: tenho um grande autoconhecimento [«autocrítica» na tradução anterior de Ilse Losa para a Livros do Brasil]», escreveu Anne: «Em tudo o que faço, consigo observar-me como se fosse uma desconhecida. Consigo pôr-me de fora da Anne de todos os dias e, com imparcialidade e sem a tentar desculpar, observar o que ela está a fazer, tanto o bom como o mau.»
Este grau de honestidade só é possível quando a capacidade de observação é aliada do pensamento crítico e reflexivo. Mais: quando a vida interior de uma adolescente brutalizada ainda não foi totalmente destruída pelo «lado pior da natureza humana, quando toda a gente duvida da verdade, da justiça e de Deus». Pergunto-me que esforço intolerável teremos ainda nós de fazer - adultos, mas sobretudo adolescentes e crianças - para resistir à distribuição diária de pequenas e grandes mentiras a que somos expostos. Mais do que um testemunho histórico, O Diário de Anne Frank, hoje integrado nas Metas Curriculares de Português (8º ano), é uma obra «que nunca acabou de dizer o que tem a dizer» (para recorrer à definição de Italo Calvino em Porquê Ler os Clássicos?), precisamente porque se construiu ancorada na verdade essencial de um indivíduo, uma rapariga morta aos 15 anos num campo de concentração.
Recentemente, numa visita que fiz à escola EB1 de São João de Brito, em Lisboa, uma professora desassombrada comentava: «Outro dia, o meu filho perguntou-me "mãe, o que é a esperança?", e eu não sabia o que lhe dizer... E agora acontece isto: queremos que eles leiam O Diário de Anne Frank, mas não lhes sabemos explicar o que é a esperança.»
Possa a vida prosseguir e prosperar, mas não em anexo.
O Diário de Anne Frank - versão definitiva
Tradução de Elsa T. S. Vieira
Livros do Brasil, 2015
6 comentários:
Ter esperança é acreditar que pode acontecer o que se deseja até mesmo enquanto em anexo.
Esperança e ilusão andam de mãos dadas. A primeira morre quando a segunda, ou deixa de ser necessária por concretização. A esperança é um encorajamento tão grande quanto o é a coragem de a manter.
Obrigada por tudo o que escreve :).
Agradeço muito o seu feed-back, Alexandra. Um abraço. :-)
Caro «Anónimo», parece-me que o teclado comeu algumas letras do seu segundo comentário («... a primeira morre quando a segunda acaba»?), mas percebi perfeitamente o que quis dizer. Obrigada.
O teclado é inocente :). A esperança morre perante a desilusão (morte da ilusão).
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