sábado, 31 de outubro de 2015

DIZER QUE SIM A TUDO


Creio que remonta a meados da década de 1990: numa edição da LER, deparei com uma entrevista em que alguém afirmava a importância de ir pela vida fora dizendo que «sim» a tudo (desculpem tanta imprecisão, mas dar-me-ia muito trabalho percorrer agora 17 anos de revistas). Há que ver nestas palavras a intenção de uma disponibilidade diária para a surpresa e para o estabelecer de laços; não confundir com permissividade, com indiferença ou com aquele confortável relativismo que balança ao sabor dos ventos favoráveis. Dizer que «sim» a tudo, com a salvaguarda de saber dizer «não» quando é preciso, lembra-nos de que somos seres para o mundo, que guardamos em nós a raiz e o seu movimento, decorrendo a vida como uma dança entre esses dois extremos e pouco mais.

Foi nessa ideia que pensei ao folhear, pela primeira vez, o novo livro de António Jorge Gonçalves, um picture book que parte de uma imagem fortíssima: de tanto dizer «não», uma menina perde a cabeça, assim mesmo, de repente, ploc! O que fazer? Ir procurá-la, naturalmente. Primeira pista: «Uma gaivota contou-lhe que o vento estava a levá-la para a montanha.» Numa demanda que remete para o itinerário mítico do herói dos contos étnicos/tradicionais/de fadas, com a sua sequência de obstáculos e forças coadjuvantes, a menina sobe a montanha e, num gesto involuntário (como quase sempre acontece), mergulha no seu interior obscuro e ardente. Como sair dali? De novo, a gaivota recorda-lhe outra pista: «Era preciso usar a palavra mágica», a palavra que é o oposto da que a fez perder a cabeça. A palavra mágica é «sim». Após a transformação, o regresso a casa é então possível.

Barriga da Baleia, o livro anterior de António Jorge Gonçalves para a editora Pato Lógico (distinguido na selecção White Ravens 2015), assentava também na demanda iniciática de uma menina atraída pelo mundo dos sonhos, mas decorria sob o elemento simbólico da água. Corrigidas pequenas imperfeições ao nível do texto, Eu Quero a Minha Cabeça! constrói-se agora sob o signo da terra e das suas diversas manifestações: a montanha, a árvore, a raiz, a pedra, o vulcão. É um livro belo e sábio, intemporal, peculiar. É um livro que só pode formar um enorme e brilhante «sim» na cabeça do leitor.

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