sexta-feira, 27 de novembro de 2015

CIDADE SEM ALMA


Exemplo perfeito de literatura crossover, O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares foi um dos livros que mais gostei de ler este ano. Cidade sem Alma, a sequela, também não desmerece. O último volume da trilogia saiu em Setembro passado. Aguardamos tradução. Agora que o próximo número da LER está a chegar, deixo aqui o texto que escrevi para a edição nº 140:

Uma rapariga que faz fogo com as mãos. Outra, capaz de erguer um rochedo bíblico com o braço. Outra que faz crescer flores e trepadeiras em poucos segundos. E também um rapaz invisível; e ainda outro rapaz que abriga milhões de abelhas dentro de si, prontas a atuar como arma mortífera. Há mais para esta amostra de freak show, mas fiquemo-nos por uma sucinta apresentação dos personagens conhecidos de O Lar da Senhora Peregrine para Crianças Peculiares (Contraponto), já adaptado ao cinema por Tim Burton e aguardado para 2016.


O segundo volume da trilogia de Ransom Riggs, que do anonimato passou a best-seller do New York Times, começa com a fuga do grupo de «peculiares» para um lugar incerto: «Éramos dez crianças e um pássaro em três pequenos e instáveis barcos, remando com uma intensidade silenciosa rumo ao mar...». Possível evocação do tema da nave dos loucos, um método barbaramente ancestral de as populações se livrarem dos seus elementos dissonantes, a deriva marítima separa o grupo da ilha galesa onde a casa da Senhora Peregrine lhes serviu de abrigo e de consolação trágica. Numa manhã de Junho de 1940, os esquadrões da Luftwaffe arrasam o lar clandestino dos órfãos de guerra, que a esta condição somam poderes sobrenaturais. E passam a existir num tempo paralelo, graças a um vórtice aberto para outra dimensão da realidade.


Ser «peculiar» sempre foi um dom e uma maldição, em todas as épocas. Além do monstro nazi, reaparecem no encalço das crianças (alguns, já adolescentes) outros seres monstruosos, híbridos das experiências dos homens quando brincam a Deus: os «sem-alma» e os «errantes». Não haverá piedade para quem se atravesse ao caminho. «Somos todos excluídos e deambulantes», dirá o líder dos ciganos ao bando de crianças peculiares, passada a desconfiança.


Além de uma imaginação invejável, das descrições vívidas e de um sentido de ritmo narrativo sem distrações, o livro tem a particularidade de integrar no enredo uma série de fotografias reais, a preto e branco, que aumentam a surpresa da história e da própria percepção leitora. Perante estas imagens, vindas dos arquivos do autor e de outras coleções pessoais, fica a pergunta: para que precisamos de viagens no tempo, se este nosso tempo já é estranho q.b.? 

Cidade sem Alma
Ransom Riggs
Contraponto

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