segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

ESCRITA E VULNERABILIDADE


O acto de escrever também reescreve o escritor e a sua vida. Numa palavra: transforma-o. A menos que a escrita seja coisa anódina, exercício de estilo ou construção artificial, é impossível escrever com sinceridade sem nos tornarmos cada vez mais vulneráveis. Não quero dizer «sensíveis», porque todos somos mais ou menos sensíveis. Mas nem todos temos a intenção de nos tornarmos vulneráveis, com tudo o que de assombroso e assustador implica esse estado de porosidade ao mundo. É muito difícil separar as águas e dizer «isto é a vida e isto é a literatura», porque a contaminação é inevitável, mesmo insidiosa. Escrever pode baixar tremendamente o sistema imunitário e, com isso, originar livros sublimes: livros belos, terríveis e profundos. Livros que nos atravessam como um nevoeiro e nos fazem chegar à última página com as mãos molhadas e um arrepio no corpo todo. Ler também pede que nos tornemos vulneráveis, mas podemos sair airosamente. A vulnerabilidade que a escrita exige não é algo a que se possa escapar com o mesmo grau de conforto e desprendimento. No entanto, é ao tornar-se vulnerável que o escritor pode chegar a curar pela palavra. Para mim, esse é que é o Graal.

(Na imagem: Flannery O'Connor. Retirada daqui.)

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