domingo, 13 de novembro de 2011

A ÚLTIMA CRÓNICA


Não, nunca nos habituamos à nostalgia do fim do Verão, por muito que tentemos. Por muito que nos digam: «para o ano há mais», «é tempo de recomeços», «a chuva faz falta» e «são bonitas as folhas no Outono». Pois, diz que sim. Mas quando arrumamos de vez as toalhas de praia, limpando os vestígios de sal, de sol, do cheiro a areia e a bronzeador, todas essas verdades bem-intencionadas perdem para a nossa atávica memória sensorial. Porque o Verão é sobretudo isso: imagens, sons, cheiros, sabores, texturas. É um cão a correr junto às ondas, é uma cara sardenta cheia de creme Nívea, é um beijo com sabor a gelado, é o perfume das estevas e dos pinheiros numa estrada secundária. Todos os anos, temos a possibilidade de retomar esse imaginário enraizado no passado e saboreá-lo novamente. E se o imaginário significa a possibilidade de brincar com as imagens que acumulámos desde crianças, então não existe época do ano mais livre nem mais completa. Nada se lhe compara, em amplitude e agudeza dos sentidos. Quando acaba, sentimo-nos inevitavelmente mais velhos, mais responsáveis. De certo modo, cada verão que termina é um ano perdido da nossa infância. Por isso a nostalgia do fim do Verão é sempre igual, estando nós diferentes. Repete-se ciclicamente, adiantando-se ou atrasando-se em relação ao calendário, mas chega o dia em que nos apanha, tal como a data do nosso aniversário. Não, nunca nos habituamos à ideia de que também o Verão envelhece. Como todos nós.

(Texto publicado na edição de 6 de Novembro da Notícias Magazine, revista de domingo do DN e JN, na secção "Nostalgia". A extinção desta página, decorrente da reformulação editorial da revista, significa também o fim de uma colaboração regular que iniciei em 1994.)

5 comentários:

O Espírito do Tai Chi disse...

Trata-se tão só... de mais um virar de página... do grande livro que é a vida...

António Serra

Isabel disse...

Estive a lê-la hoje de manhã no café.
Sem imaginar que era a última...
Vou ter saudades.

Carla Maia de Almeida disse...

"Tudo morre o seu nome noutro nome." (Herberto Helder)
Um abraço aos dois. Obrigada.

Letra pequena disse...

Será a última naquele espaço (e é pena), mas ninguém conseguirá imaginar a Carla a deixar de escrever crónicas (ou o que se lhe quiser chamar)sobre os temas que a movem e lhe interessam. Queremos acreditar que encontrará novo "tempo de antena" (pago, com certeza).
Abraço e obrigada por nos pores a pensar (e a recordar.)
Rita Pimenta

Carla Maia de Almeida disse...

Rita, obrigada. Independentemente do "tempo de antena" (que o grande Deus radiofónico te ouça) que me for concedido, é claro que continuarei a escrever, a pensar, a ter ideias, a escrever, a pensar, a ter ideias... Não acredito eu noutra coisa! :-) um abraço